baralhe-me as cartas, madame. dê-me o baralho em naipes de sede e
passado com fome de corpos e almas. deixe-me os jokers, aprendi a jogar com
quem serve a vida do lado que mais lhe convém. os reis não existem, mas ainda há príncipes
encobertos por aí. encha-me o copo, madame, com whiskey. repare nesta jogada: uma dama de
copas, um coração vermelho de amor presente. vestido branco, uma paixão que se
sente vibrar como o maior trunfo na mesa. quer sempre folgo e o deslumbre das
flores sobre si. mas observe melhor, madame, olhe nessa outra dama que surge do
avesso com o coração em luto, sempre apoiada nas memórias do tempo. chamam-lhe
espadas, madame, porque magoam. abrem-lhe a carne morena, sugam-lhe amor e
vida; dão-lhe prazer e o sentido despropositado de uma casa antiga e nostálgica.
se estas cartas tivessem rosto que se visse, bastariam seus olhos para lhe dar
fome de sonhos, madame. e sangue nesse corpo que é meu. sua excelência percebe de cartas,
madame? não responda, qualquer que seja sua resposta não me interessa na
verdade. admito que não percebo nada de cartas, nem tampouco destes jogos que
inventam como se o amor tivesse sempre um preço para lá da morte. não me
encaixo neste caos de saudade e tempo. falta um valete, madame. julgo que terá face sacana, há quem lhe chame
ouro que brilha para lá das estrelas; e há quem lhe tenha queimado os paus que
sustentam sua alma num jogo mais antigo. espere, madame, deixe-me sair desta
mesa antes de lançar essa última carta. quem sou eu para aguardar sentado as
certezas do destino? mas deixo-lhe um pedido, madame: se encontrar tais damas
numa outra mesa que não a minha, sirva-lhes ases com amor e frescura. não
importa qual o naipe, nem o passado, só suas felicidades importam, tal como o
futuro que merecem. mas madame, se puder lembrar-se de mim, deixe-me ainda uma última carta, pois também eu preciso de amor. pois também eu preciso de sorte numa última jogada. oh, que
me ensine a jogar à vida. e me mate por fim.
Sem comentários:
Enviar um comentário