Almas

20140812

madame. cartas.



baralhe-me as cartas, madame. dê-me o baralho em naipes de sede e passado com fome de corpos e almas. deixe-me os jokers, aprendi a jogar com quem serve a vida do lado que mais lhe convém. os reis não existem, mas ainda há príncipes encobertos por aí. encha-me o copo, madame, com whiskey. repare nesta jogada: uma dama de copas, um coração vermelho de amor presente. vestido branco, uma paixão que se sente vibrar como o maior trunfo na mesa. quer sempre folgo e o deslumbre das flores sobre si. mas observe melhor, madame, olhe nessa outra dama que surge do avesso com o coração em luto, sempre apoiada nas memórias do tempo. chamam-lhe espadas, madame, porque magoam. abrem-lhe a carne morena, sugam-lhe amor e vida; dão-lhe prazer e o sentido despropositado de uma casa antiga e nostálgica. se estas cartas tivessem rosto que se visse, bastariam seus olhos para lhe dar fome de sonhos, madame. e sangue nesse corpo que é meu. sua excelência percebe de cartas, madame? não responda, qualquer que seja sua resposta não me interessa na verdade. admito que não percebo nada de cartas, nem tampouco destes jogos que inventam como se o amor tivesse sempre um preço para lá da morte. não me encaixo neste caos de saudade e tempo. falta um valete, madame. julgo que terá face sacana, há quem lhe chame ouro que brilha para lá das estrelas; e há quem lhe tenha queimado os paus que sustentam sua alma num jogo mais antigo. espere, madame, deixe-me sair desta mesa antes de lançar essa última carta. quem sou eu para aguardar sentado as certezas do destino? mas deixo-lhe um pedido, madame: se encontrar tais damas numa outra mesa que não a minha, sirva-lhes ases com amor e frescura. não importa qual o naipe, nem o passado, só suas felicidades importam, tal como o futuro que merecem. mas madame, se puder lembrar-se de mim, deixe-me ainda uma última carta, pois também eu preciso de amor. pois também eu preciso de sorte numa última jogada. oh, que me ensine a jogar à vida. e me mate por fim.

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