Almas

20160420

vomito


desprezo. dás-me com desprezo e eu vomito. engulo o vomito tantas vezes que o meu estômago é não mais que um mar de degredo. morto. maciço. baço. uma réstia liquida onde descansa a morte. o veneno. o nojo. poderia aguentar tempo sem fim, enquanto construo um castelo de névoa e frio. é este o sítio onde habito. onde me guardo. sinto o dever que chama dentro de mim. alimentar-me. castigo-me. engulo o que menos quero, mas anseio-o no mesmo instante. a incerteza de que a morte não chega. de que o medo fica ou parte. que o amor não vem. não estará lá em numero suficiente? o amor pode contar-se e conter-se? ás vezes tento medi-lo. em força. quantos cortes aguentaria ele? até ser amputado de vez? o braço? o pulso onde lhe sinto o batimento. a mão que me tapa a boca e, me dá de comer. os dedos que me impedem o vomito. não quero que saias. não quero sentir o vazio. o estômago em espuma branca quando tudo o resto for. vai. feitiçaria. é tão bom queimar-me o corpo com café e sal. e cortar-me o estômago com os dentes em brasa. queima-me a pele. castiga-me o ser. confessa-me. diz que me torturas a alma e me carregas o corpo com veneno. é assim tão doce a tentação? a loucura do pecado? é mais leve que a alma? quanto pesa? quando mede? posso medi-lo? o degredo? o fim, o abismo, o poço? quantas escadas serão até ver-se luz? desprezo. dás-me com desprezo e eu vomito. engulo o vomito tantas vezes que o meu estômago é um banho de químicos. o que não presta de mim. guardado nas profundezas da minha vergonha. as facas. as mortes. o cancro. o amor. sonhei tantas vezes que julguei ter queimado todas as fichas. o carrossel parou. se o meu sonho viaja, o estômago prende-o. joga-lhe a memória e ela falta-lhe. será um feitiço todas as noites? será o degredo? morto, maciço, baço, que não deixa o sonho ficar? penetrar? deixar ser leve, além do peso que me transtorna. talvez mereça ser isto. o que me resta. não fazer mais por mim. não ter mais ninguém por mim. resignar-me ao barulho das tripas a contestar uma qualquer incapacidade de digestão. é tão difícil destruir o escuro. o que não se vê. o meu maior medo é a faca com que me corto. não chegar nunca ao sítio das coisas más. onde o cancro habita. não ter força para cortar tudo. nem um só bocado. o meu maior medo sou eu. o criador de mim mesmo. o organizador da matança. o escultor do abismo. o servo que me dá de comer. que me impede o vómito. que segura o degredo dentro de mim. que me impede de ser. ser só. desprezo. dás-me com desprezo e eu vomito. não percebo, mas vomito. desentopes-me os canais e eu vomito. amo-te, mas vomito. amo-te.

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