Almas

20130402

lareira em corpos mortos.


uma lareira num canto e três mortos pelos outros restantes. o fogo é o ser mais vivo que nos resta e mesmo esse vai-nos fugindo com a madrugada. porque até ele precisa de alimento que lhe sustente o físico. as persianas estão corridas para não deixar que a morte chegue ao andar de cima, mas os buracos que se sentem do desgaste do uso deixam que ainda veja a lua. brilha com a luz do seu outro amor mais escondido, tal como nós que brilhamos do amor que nos dão. mas aqui não há amor. somos três corpos e outras tantas almas aqui depositadas e nenhum liberta um pouco de sede de carinho. a noite é mais noite e já não vejo as árvores. um dia falaram-me de borboletas e eu tanto que as queria ver belas como falaram. mas vivo dos corvos que voam em círculos esperando por mim. vivo do medo dos mochos que cantam às sombras a sua companhia de despedidas. dos morcegos que inspiram mortos-vivos com o desejo a sangue que lhes dê vida. e nenhum destes quer amor. eu era tanto como as borboletas até me acorrentarem as asas. eu tinha tanto para dar mas morreu aos poucos comigo. eu tinha tanto para receber mas morreu aos poucos antes de chegar. a lareira apagou-se com a água do mar que banha os faróis que tenho no rosto. já não alumiam nem avisam daquilo que me vai na alma, ou na falta dela. até o brilho secou, tal como as lágrimas irão secar quando já não restarem memórias. somos três corpos de alma adormecida. o amor fechou-nos os olhos no passado e talvez o mesmo os volte a abrir no futuro. mas nenhum está disponível para amar novamente se sabe que o fim é o funeral do nosso corpo mutilado de novo pelo que não foi cumprido de parte a parte. a lareira apagou-se, porque esta casa pertence a almas penadas. o fogo é vida, não poderia alimentar-se de corpos mortos. por isso também ele morre, todas as madrugadas no fim de nascer. já nós esperamos nascer, antes de morrer finalmente.

3 comentários:

  1. "já nós esperamos nascer, antes de morrer finalmente"... já eu, espero tornar-me eterna para poder, por fim, morrer. És fantástico com as palavras, sejas corvo ou borboleta... oh, e o amor, esse veneno que não nos mata mas dá vida.

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  2. Fazes-me perguntas cujas respostas demorariam dias a tornar-se esclarecedoras. Não confio em deus nenhum, para mim não passa de uma metáfora. Eu acredito sim, nos Homens e na substância que os une, as almas. Tornar-me-ia eterna se lhes deixasse algo útil no mundo. "últil para quê? qual o sentido da vida?" Para mim Deus está em pedaços, um pouquinho dele dentro de cada um de nós, e a eternidade não está portanto depois da morte, atingi-la-íamos quando os homens aprendessem a ser como Um só. Aprendessem não o que significa humanidade, mas a serem humanidade. Talvez eu seja só uma sonhadora, talvez.. e talvez nem me tenha explicado bem, mas, tal como disse, fazes-me perguntas cujas respostas precisariam de tempo.

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  3. A tua escrita marca-nos o coração!

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