Almas

20130221

uma vez, duas vezes, várias vezes


noite de inverno. o nevoeiro cerrado tapava as vistas longínquas. uma casa em pedra maciça, tão maciça quanto a dor daqueles tempos. era a única casa naquele monte vazio, só mais existia o vento com a vida e os gritos. e dois corpos. uma mulher, largada dos filhos que a visitam quando se lembram e não quando podem. uma mesma mulher traçada pela vida com as cicatrizes das doenças que a escolheram. e um homem. vulgarmente infeliz, que não teve funções de pai e que à muitos anos se perdeu no papel de marido. perdeu-se, do papel de companheiro fiel no momento em que a doença lhe roubou a esposa e o amor. a luz não chega aquele monte e de perto só se ouvem os animais que vagueiam em busca do suor a carne fresca. nada existe. as horas após o jantar são de horror para os corpos que lá habitam. ela já deixou de viver. a doença matou-lhe demasiada vida e agora o homem mata-lhe demasiado a morte. e então nem vive, nem morre. acomodou-se a um parasita que lhe rouba a virgindade todas as noites a sangue frio. rouba-lhe o sexo violentado de frieza. viola-lhe a alma com o nojo da doença lhes ter levado o amor. ele vem-se por rotina porque já nem ele sente. a barba por desfazer é o luto pela inocência levada e o vinho que lhe escorre pelo beiço é o único disfarce à depressão. enche-lhe o ego rasgar trapos de um corpo cozido, mas os trapos são tão trapos que o ego vaza tão rapidamente como os sorrisos da infância. e por isso o repete. todas as noite, uma vez, duas vezes, várias vezes. rouba-lhe o espirito, uma vez, duas vezes, várias vezes. ela crê merecer o castigo por a doença lhe ter levado o amor próprio, uma vez, duas vezes, várias vezes. sabe que apenas alimenta um corpo molestado porque à muito que a alma a abandonou. não a incomoda o que ele lhe rouba do corpo, se a doença também a roubou sem um contracto até que a morte as separasse. se a doença pôde, ele também há-de poder. aos dois já nada importa, já nada os faz amar, já nada os faz ver o mundo para além do nevoeiro cerrado. e eu. eu tantas vezes os vejo, do lado de dentro da minha janela. e tantas outras vezes choro por eles, uma vez, duas vezes, poucas vezes para as que merecem. eles não se querem, não se olham, nem respiram já o mesmo vento que lhes chora os ouvidos, mas tão pouco saberiam viver um sem o outro. assim se deixam, sem viver e sem morrer, uma vez, duas vezes, várias vezes. e assim o tempo passa, para mim e para eles. eu continuo a vê-los quando me lembro, e eles continuam a ser meus pais, uma vez, duas vezes, várias vezes. vez nenhuma.


3 comentários:

  1. Neste, eu não consigo dizer muito. Fantástico.
    E volto a dizer que, para mim, melhoraste imenso,a escrita.

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  2. Sensacional. Consegui imaginar tudo o que relataste de uma forma tão assustadoramente real. É realmente impressionante como consegues escrever de uma forma tão clara e ao mesmo tempo complexa. Não costumo conseguir imaginar tão bem o que as pessoas escrevem se for em texto sem fala por não ter a clara certeza das expressões de cada personagem, mas este texto conseguiu provar-me que é possível. Está mesmo divinal. Não precisas de agradecer! Se não gostasse não visitaria o teu blogue e muito menos deixava comentários! :) Eu é que agradeço pelo teu comentário!

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